Visibilidade e memória das mulheres nos livros de fotografia

A discussão em torno do tema das mulheres no campo da imagem é longa e assim deve ser diante da sua complexidade. O debate traz duas perspectivas: a crítica à imagem estereotipada das mulheres em pinturas, filmes e fotografias – a mulher como objeto de representação –, e o questionamento mais contemporâneo sobre o lugar por detrás das câmeras, da presença das mulheres no processo produção da imagem.   

Essas questões vêm sendo debatidas graças à atuação de coletivos como o Guerrilla Girls, fundado por mulheres ativistas em Nova York em 1985, que mapeou a desigual presença de artistas mulheres, negras e negros, em comparação ao contingente de homens brancos em espaços de exibição de arte. Em uma de suas ações, o coletivo apontou a disparidade entre a quantidade de obras que representavam mulheres nuas e as obras de autoria feminina nos museus. O questionamento das narrativas visuais e dos olhares e vozes que as enunciam segue sendo feito por organizações, plataformas e coletivos internacionais como Women Photograph, Native, Fotógrafas Latam, e nacionais como Trovoa, MUNA (Mulheres Negras nas Artes), DAFB (Diretoras de Fotografia do Brasil), YVY Mulheres da Imagem, entre tantos outros. Por conta disso, aos poucos algumas importantes instituições culturais passam a incorporar o debate sobre a questão de gênero, a exemplo da realização das exposições Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2018, e Histórias das Mulheres: artistas até 1900 e Histórias Feministas: artistas depois de 2000, no MASP, em 2019.

No campo da fotografia especificamente, as estatísticas de participação de mulheres em prêmios, convocatórias, livros e exposições em conjunto com o depoimentos de fotógrafas e produções acadêmicas evidenciam uma história de desigualdade e invisibilidade. Alguns desses dados são:


Fotojornalismo

– As mulheres configuraram somente 15% a 17.5% das inscrições no prêmio World Press Photo entre 2008 a 2018, e 20% em 2020. Representaram 12% dos finalistas em 2018, 32% em 2019 e 13% em 2020.

– 68% (126/187) das fotojornalistas afirmaram ter sido vítimas de discriminação no local de trabalho, em pesquisa realizada em conjunto pela World Press Photo Foundation, University of Stirling e Oxford University’s Reuters Institute em 2018.2

– Em grande parte dos jornais de grande visibilidade internacional, mulheres fotógrafas não assinam nem 30% das fotografias em destaque na capa. No New York Times, 29.5% dessas fotografias foram assinadas por mulheres em 2019 e, em 2018, 19.9%, sendo apenas 4.8% por mulheres não brancas3. No Le Monde apenas 11.8% dessas fotografias foram assinadas por mulheres em 2019 e 7.3% (1% não brancas) em 2018. Os dados são da organização Women Photograph.4

– Em análise feita pela YVY Mulheres da Imagem das capas do jornal Folha de S. Paulo durante um mês (16/08 a 16/09/2019) apenas 5.7% (3/53) das fotos eram assinadas por mulheres, sendo todas elas brancas.5

– As mulheres configuraram 3,6% (2/55) dos premiados pelo Prêmio Esso na categoria Fotografia (1961-2015).6


Livros de fotografia

– Em âmbito internacional, livros fotográficos produzidos por mulheres configuram 10.5% das seleções de melhores livros, 16.2% dos títulos disponíveis para venda das 3 maiores editoras e 30% dos vencedores de “melhor livro/autor(a)” segundo a organização 10x10 Photobooks.7

– Na primeira etapa de desenvolvimento da Base de Dados de Livros de Fotografia, focada na cidade de Brasília, foram catalogadas 287 publicações e 440 fotógrafos(as). Destes, apenas 21,2% são mulheres. É importante considerar, ademais, que uma parte dos livros são coletâneas que incluem o trabalho de dezenas de fotógrafos(as). Apenas em 26 das 287 publicações cadastradas a fotografia é assinada exclusivamente por mulheres. Além disso, nas décadas de 1950 a 1980 não encontramos, durante nossa pesquisa em acervos públicos e privados, nenhuma publicação cuja autoria fotográfica seja exclusivamente feminina.


Não é possível explicar esse cenário apenas por conta da invisibilidade histórica das mulheres. Há uma ausência de comprometimento de grande parte das instituições com o debate de gênero. A desigualdade é um problema complexo e estrutural. Perpassa a presença restrita de mulheres nas curadorias, as condições desiguais de remuneração e publicação de suas fotografias, para além das tantas questões de gênero que não estão restritas ao campo da fotografia, mas que se aplicam a ele. A questão racial enfrenta barreiras ainda maiores, sendo importante frisar que grande parte das mulheres que alcançam alguma visibilidade são brancas, de classe média/alta, urbanas e altamente escolarizadas. 

A necessidade de constatar a desigualdade de gênero sempre que se inicia a maioria das discussões amplas sobre mulheres na fotografia é um indicador de que ainda não superamos no campo nem a camada mais superficial do debate. Partimos dos dados relativos à participação das mulheres nos espaços institucionais, que concentram os meios de produção e circulação, para aprofundar a discussão sobre representação e representatividade. 

Desde o seu surgimento em meados do séc. XIX, a fotografia está atrelada à construção de um regime de verdade científico. Inserida nas estruturas de poder que atravessam a vida social, sob pretensas ideias de neutralidade e objetividade, atribui-se credibilidade para a fotografia construir modos de ver o mundo8, eximindo-a do questionamento de quem é que a produz. Não é nova a discussão de que a fotografia não é uma evidência do real, mas uma interpretação do mundo, expressando a subjetividade, escolhas e experiências de quem fotografa. Entretanto, ainda parece necessário continuar afirmando que por conta disso é urgente a visibilização e fomento de olhares diversificados. Apenas uma fotografia construída pelo viés da diversidade possibilita o questionamento da narrativa única, de representação restrita e estereotipada, à qual se refere a escritora nigeriana Chimamanda Adichie em sua conhecida palestra O perigo de uma história única (2009). 

Falar sobre mulheres e fotografia frequentemente recai num lugar comum e equivocado do “olhar feminino”. A busca por essa distinção apaga a diversidade das identidades das mulheres que experienciam de maneira heterogênea raça, território, classe, geração, sexualidade, entre outros fatores. Mesmo a caracterização de um olhar feminista – no sentido de crítica aos estereótipos visuais atribuídos às mulheres ao longo da história – é frágil diante da pluralidade de perspectivas do movimento. 

Um dos perigos da defesa do “olhar feminino” por parte de instituições culturais que fomentam a fotografia está na tentativa de resolução da desigualdade através da realização de mesas de discussão, mostras pontuais ou outras iniciativas segmentadas para mulheres fotógrafas. Tais iniciativas, entretanto, não proporcionam uma revisão crítica das práticas curatoriais destas mesmas instituições. Quantas de nós não fomos convidadas para atividades sobre “mulheres na fotografia” ou “olhar feminino”, enquanto outros eventos da mesma organização com temas diversos são ocupadas em sua maioria por homens brancos? Ações voltadas para visibilizar a produção de fotógrafas e pôr em questão a desigualdade, como este próprio texto, são importantes, mas não representam a superação desse problema estrutural. 

Todos os grupos sub-representados politicamente deveriam poder alcançar os mesmos meios de produção e visibilidade na fotografia. As mulheres estiveram envolvidas com a fotografia desde seu primórdio, como afirmou a historiadora estado-unidense Naomi Rosenblum ao compilar mais de 270 produções de mulheres em seu livro History of Women in Photography9. Segundo a autora, as fotógrafas foram invisibilizadas em grande parte da história da fotografia por diversos fatores, a exemplo das imagens que foram produzidas em conjunto por Carolyn e Edwin Gledhill e referidas em bibliografias como um trabalho de Edwin apenas. Quando finalmente presentes nas notáveis exposições, coleções e literaturas, dificilmente alcançam a mesma importância e espaço que fotógrafos homens, tampouco iguais condições de trabalho e remuneração. 

Assim, Rosenblum traz uma pergunta essencial, que é retomada pela pesquisadora brasileira Amélia Corrêa10 em 2014: as mulheres e suas fotografias estão visíveis como deveriam em relação à quantidade e à influência que tiveram e têm na fotografia?

São muitas as camadas pelas quais se estruturam os processos de invisibilidade. Os livros de fotografia são meios importantes pelos quais produções circulam e atravessam o tempo, perpetuando-se simbolicamente em memória e materialmente em documento. São muitas as autoras de publicações (principalmente em obras de autoria coletiva anteriores aos anos 2000) cuja trajetória desconhecemos e sobre as quais não encontramos praticamente nenhuma informação disponível.

Entretanto, os livros reivindicam sua existência. E para as mulheres, o reconhecimento não apenas da existência, mas da atuação e contribuição para a fotografia e seus desdobramentos na história, no jornalismo ou na arte, é muito caro. Deste modo, a importância da presença feminina na autoria de livros fotográficos não se refere apenas à representatividade circunstancial da atuação das mulheres na produção das imagens, mas também sobre a possibilidade de documentação, circulação e inscrição destas produções fotográficas na própria história da fotografia. 

O primeiro livro fotográfico que se tem conhecimento foi produzido por uma mulher. Trata-se de Photographs of British Algae: Cyanotype Impressions (1843–1853), da botânica inglesa Anna Atkins (1799-1871), considerada por alguns historiadores como a primeira mulher fotógrafa. O livro é composto por 3 volumes com 14 páginas de texto e 389 de desenhos fotogênicos em cianótipo.11