História (__) Fotografia: uma apreciação historiográfica

Parece faltar alguma coisa ao título deste texto. A lacuna que lá está é estratégica. Com ela, quero destacar que “história” e “fotografia” são dois termos que se relacionam de formas variadas, que cada tipo de interação é definido pela ordem em que os termos aparecem e por aquilo que colocamos entre eles. Abordarei o tema a partir de uma “apreciação historiográfica”, que indica o ponto de onde olharemos e os ajustes focais da mirada.

As possibilidades de preenchimento da lacuna serão apresentadas a partir de obras clássicas e outras mais recentes. Porém, de maneira introdutória e, necessariamente, seletiva. Sugiro deixarmos a lacuna aberta para que ela promova um debate perene e engajado, aguce a curiosidade investigativa e maximize o prazer de olhar para fotografias, na busca dos seus usos e funções na prática historiadora contemporânea.

  

(da) 

  

Se falamos em história da fotografia, podemos nos referir ao surgimento gradual da imagem técnica ao longo do tempo, primeiro como possibilidade e desejo, desde o final do século XVIII (Batchen, 2004), até sua consolidação em formatos viáveis, duráveis e bem aceitos, a partir do final da década de 1830 e ao longo do século XIX. Falamos não só desses desenvolvimentos, mas também do conjunto de investigações que se debruçaram sobre o tema por meio de premissas teóricas e metodologias diferenciadas. Assim, a história da fotografia é um campo amplo de pesquisa, de forma que falar sobre ela criticamente é fazer, na verdade, uma história da historiografia da fotografia.

São numerosas as publicações que documentaram a história das técnicas fotográficas. Muitas surgiram para cumprir o papel de manuais e roteiros das práticas fotográficas, mas, inevitavelmente, seus autores acabavam produzindo uma narrativa factual – às vezes permeada de julgamentos estéticos – sobre a fotografia. Dentre muitas possibilidades, lembro de Marc Antoine Gaudin, fotógrafo que publicou um tratado técnico sobre o daguerreótipo, em 1844. Como faziam outros autores, nos anos iniciais do sucesso do aparato de Daguerre, Gaudin oferecia conselhos a partir de sua prática, seus acertos e erros. Relata, ironicamente, que ao fazer a exposição de uma chapa, direcionou sua câmera para a vista da sua janela. Depois de quinze minutos e de um banho de mercúrio, a paisagem ficou totalmente borrada, mas a moldura da janela saiu perfeita (Gaudin, 1844, p. 6). Eram os operadores envolvidos com suas práticas e com um aparato ainda não totalmente dominado.

     

Traité pratique de photographie: exposé complet des procédés relatifs au
 daguerréotype
(1844), de Marc Antoine Gaudin. Disponível aqui.

     

Não podemos deixar de mencionar Josef-Maria Eder, que escreveu aquela que talvez seja a primeira história da fotografia digna desse nome. É sempre perigoso afirmar categoricamente algo assim. Digamos, então, que Eder foi um dos pioneiros da apreciação efetivamente histórica das práticas, técnicas e aparatos fotográficos, com seu History of photography, que em 1905 já estava na terceira edição. Sua narrativa começa em Aristóteles e passa pelos conhecimentos alquímicos, pelas tentativas de impressão a partir da natureza, no século XVI, até chegar aos modernos experimentos ópticos e, finalmente, em Daguerre. Assim, o trabalho de Eder é estruturado cronologicamente e sobre uma premissa teleológica. É, no entanto, bastante informativo e indispensável para a história da historiografia da fotografia.

  

History of Photography (1905, 3. ed.), de Joseph Maria Eder.
Disponível aqui.

 

A história da fotografia apresenta “momentos” distintos. Eles apontam para as questões que os agentes da imagem técnica (fotógrafos, historiadores, críticos de arte, curadores de museus) valorizaram como as mais importantes nas suas apreciações historiográficas. Ao invés de inventariar todos esses “momentos” e escritos, faço aqui um esboço generalizante vinculado a um aspecto fundamental para a prática historiadora: a noção de documento.

É conhecida a frase de Roland Barthes (1984) segundo a qual o século que inventou a fotografia inventou também a história. Trata-se do século XIX e sua fascinação historicista (cujo espelhamento seria, para Barthes, a fascinação fotográfica). O esboço geral que quero propor é que, na medida em que muda a relação da prática historiadora com os documentos (ou melhor, na medida em que a própria noção de documento é desafiada), a fotografia ganha valor para além da prova e passa a ser um documento/monumento. Voltaremos à história (da) fotografia em outra parte deste texto, indicando as transformações das narrativas historiográficas e suas ramificações na história social.

Meu esboço tem outra face, que é preciso iluminar. Enquanto a fotografia aparece, em boa medida, como documento fiel, as práticas fotográficas vieram sempre a desafiar essa fidelidade. A história das técnicas fotográficas, essa narrativa que documenta as passagens da imagem técnica pelos séculos, é tributária dos regimes de verdade socialmente construídos. Joan Fontcuberta resume muito bem a questão quando afirma que “a fotografia nasceu como consequência de uma determinada cultura visual que ela mesma ajudou a fortalecer e impor” (Fontcuberta, 2002, p. 147). Quando a relação dos sujeitos históricos com a interpretação do mundo se modifica, a fotografia permanece como ferramenta mediadora, mas irá, necessariamente, se modificar. O que uma fotografia poderá documentar em um contexto de transformação das relações dos sujeitos com o mundo? O próprio mundo, ou a transformação dos olhares sobre o mundo? Que histórias poderão valer-se desses documentos? Assim, fotógrafas e fotógrafos podem explorar as possibilidades de manipulação visual para produzir documentos sobre as realidades sociais de seu tempo, sem necessariamente aterem-se ao documentarismo clássico, direto e “objetivo”. Fontcuberta dá vários exemplos em seu delicioso livro El beso de Judas: fotografía y verdad (2002).

  

El beso de Judas: fotografía y verdad (2002), de Joan Fontcuberta.
Publicado originalmente em espanhol pela Gustavo Gili, foi traduzido ao português em 2010 pela mesma editora.


Resumidamente, se as operadoras e os operadores dos aparatos fotográficos multiplicam os usos e as funções da imagem técnica, multiplicam-se, também, as histórias que podemos fazer da fotografia. Isso nos leva à próxima possibilidade. 

 

(com)

  

História com fotografia poderá configurar uma estratégia de investigação e uma metodologia de pesquisa. Nesse caso, a imagem terá a possibilidade de ser tanto fonte como objeto de análise. A fotografia se destacará entre os outros tipos de documentos, com os quais será colocada em diálogo e confronto. A classificação dessas investigações como histórias da fotografia não pode ser automática. Por vezes, há um interesse em um tema específico, como a história do trabalho ou a história urbana, que se apoia fortemente sobre as informações visuais que a fotografia pode oferecer.

Entre a mobilização inteligente e adequada das imagens e o uso da fotografia como mera ilustração e prova cabal das hipóteses de pesquisa, há uma linha tênue, porém imprescindível. Podemos encontrar importantes alertas sobre isso nos ensaios de Ulpiano Meneses (2003, 2005), Paulo Knauss (2006, 2008) e Ana Maria Mauad (2013, 2016), que avaliam a presença das imagens, entre elas a fotografia, na prática historiadora.